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Nome
Liliana Goncalves
Submetido por lcgoncalves a 8 March 2021
As várias faces da pandemia - Os direitos humanos e as desigualdades de género
  • Data: 08 Mar 2021

No âmbito das comemorações do Dia Internacional da Mulher, partilhamos o artigo da docente do ISCAL, diretora do mestrado em fiscalidade, Clotilde Celorico Palma:

Continua bem viva na minha memória a imagem e a mensagem daquele único poster que tinha no meu quarto de adolescente de uma mulher jovem loira, de sorriso rasgado e contagiante, que vestia uma t-shirt branca e amparava os seios com as mãos. Em baixo lia-se “Vive la différence”. Continuo a pensar, de sorriso e alma rasgados, que somos diferentes e que é bom existirem diferenças. Mas a questão reside em saber o que é diferente e porquê. Que diferenças são admissíveis? O que é diferente? Como tratar a diferença? Será que actualmente, apesar de, teoricamente, em termos jurídicos não existirem diferenças, existem efectivamente na prática? A este propósito não tenho quaisquer dúvidas. Senti-as ao longo da minha vida e continuo muitas vezes a senti-las.

Quis o destino que viesse a leccionar Direito da Família durante quase uma década. Quis o destino que, durante seis anos, fosse Conselheira do Ministro das Finanças para a Igualdade de Oportunidades e para a Promoção da Família.

Gostei muitíssimo de ambas as experiências. Continuo sempre, com grande entusiasmo, a seguir a evolução das desigualdades e, em particular, das desigualdades de género.

É um facto que as crises e as adversidades económicas e sociais tendem a agravar as desigualdades, nomeadamente as desigualdades de género e especialmente nos países em desenvolvimento. A pandemia tem várias faces. Uma delas é um retrocesso nos direitos humanos, o aumentar das desigualdades para níveis preocupantes. E, no contexto dos direitos humanos, o agravar do fosso entre homens e mulheres, depois de uma luta de anos e anos.

É habitual apontar-se o Cilindro de Ciro como a primeira declaração dos direitos humanos, escrita por Ciro, O Grande, o primeiro rei da Pérsia, por volta de 539 a.C.

Ao longo dos anos registamos diversos documentos relativos aos Direitos Humanos. 

Quando as barbaridades da Alemanha nazi se tornaram públicas depois da Segunda Grande Guerra, prevalecia na comunidade mundial a convicção de que a Carta das Nações Unidas de 26 de Junho de 1945 não tinha definido suficientemente os direitos a que se referia, sendo necessária uma declaração universal que especificasse os direitos individuais. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), com os seus trinta artigos, é um marco na história dos direitos humanos. Redigida por representantes de todas as regiões do mundo, foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, a 10 de Dezembro de 1948, com 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções (a maior parte do bloco soviético, como a Bielorrússia, a Checoslováquia, a Polónia, a Ucrânia, a União Soviética e a Jugoslávia, além da África do Sul e da Arábia Saudita), como um padrão comum de conquistas para todos os povos e todas as nações. Estabelece, pela primeira vez, que os direitos humanos fundamentais devem ser protegidos universalmente.

Como se salienta no respectivo preâmbulo, os governos signatários comprometem-se a adoptar medidas para garantir o reconhecimento e efectivo cumprimento dos direitos humanos, tendo as suas regras sido acolhidas e influenciado diversas constituições, sendo o documento mais traduzido do mundo. Tal como se enfatiza, “Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla;”

A DUDH, logo no seu artigo 1.º, vem determinar que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, acrescentando no artigo 7.º que todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção legal. A família merece um normativo especial, o artigo 16.º, prescrevendo-se, nomeadamente, que durante o casamento e na altura da sua dissolução o homem e a mulher têm direitos iguais.

Conforme se prevê no artigo 28.º, toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciados na Declaração.

Os princípios da DUDH estão detalhados em diversos tratados internacionais aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, como, v.g., a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 21 de Dezembro de 1965, tendo entrado em vigor em 4 de Janeiro de 1969, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, aprovada em 1979, que entrou em vigor em 3 de Setembro de 1981, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de Novembro de 1989, que entrou em vigor em 2 de Setembro de 1990, e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada em 10 de Dezembro de 1984. 

Como se determina na Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres ractificada por 188 Estados, “o desenvolvimento pleno de um País, o bem-estar do mundo e a causa da paz necessitam da participação das mulheres em igualdade com os homens em todos os domínios.” 

Em 1995, na Conferência de Pequim, 189 países concordaram em dar primazia à “participação plena e igualitária das mulheres na vida política, civil, económica, social e cultural ao nível nacional, regional e internacional, assim como erradicar todas as formas de discriminação com base no género.”

Passados 25 anos, podemos dizer que houve um progresso no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas, embora importante, foi uma evolução “gradual, desigual e insuficiente”, tal como se conclui no estudo da ONU Mulheres em que foram avaliados os direitos das mulheres após a Conferência de Pequim. Há menos crianças a verem o direito à educação a ser-lhes privado, mas 32 milhões de meninas continuam a não ter acesso à escola, principalmente em altura de pandemia e encerramento dos estabelecimentos escolares. A percentagem de casamentos infantis também diminuiu nos últimos 25 anos, mas a pandemia colocou mais 500 mil crianças em risco de serem forçadas a casar antes do 18.º aniversário.

A luta pela igualdade do género é uma longa história longe de estar completa e de ter um final feliz. Há bem pouco tempo no nosso país os homens eram chefes de família, as mulheres não podiam votar e era-lhes vedado, nos anos sessenta, o acesso a determinadas profissões tais como as da carreira diplomática e da magistratura, limitando-se os seus direitos, como o direito de casar, no exercício de certas profissões, como, v.g., o caso das enfermeiras e hospedeiras do ar. Só em 1976 é que deixou de ser lícita a violação da correspondência da mulher pelo marido.

Com a Constituição de 1976 operou-se uma verdadeira revolução no que toca ao enquadramento jurídico dos direitos das mulheres. 

Foram várias as limitações legais que ainda marcaram a minha geração, mas confesso que, de vez em quando, ainda sinto as limitações psicológicas com que fui educada nesta condição feminina. 

A plena igualdade de género parece ser uma realidade ainda longínqua. Ora, nesta pandemia da COVID 19 têm sido diversos os estudos que apontam para um preocupante crescimento das desigualdades de género.

Desde logo, é sobre a mulher que impende o ónus de apoiar a família e de ser a cuidadora natural dos que adoecem. Relativamente ao emprego e à educação as mulheres têm sido as mais severamente afectadas.

O Estudo do Fundo Monetário Internacional, The COVID-19 Gender Gap, July 2020, vem precisamente concluir que com a pandemia as desigualdades de género estão-se a agravar. Como se enfatiza, “The COVID-19 pandemic threatens to roll back gains in women’s economic opportunities, widening gender gaps that persist despite 30 years of progress.

Well-designed policies to foster recovery can mitigate the negative effects of the crisis on women and prevent further setbacks for gender equality. What is good for women is ultimately good for addressing income inequality, economic growth, and resilience.”

Tal como se explicita, desde logo a maioria dos profissionais que exercem funções nos sectores sociais que exigem um contacto directo, como serviços, turismo e hotelaria, são mulheres. Nos países em desenvolvimento temos mais mulheres do que homens a trabalhar no sector informal auferindo salários mais baixos, não sendo protegidas pela legislação laboral. Por outro lado, o FMI aponta como outro motivo para o aprofundamento das desigualdades o facto de as mulheres assumirem mais tarefas domésticas não remuneradas do que os homens – cerca de 2,7 horas por dia a mais. As medidas de confinamento aumentaram as responsabilidades dos cuidadores familiares, intensificando-se o trabalho das mulheres no apoio a familiares idosos e mais vulneráveis.

Após a adopção de medidas de reabertura do sistema, são as mulheres que tendem a demorar mais tempo para retomar o pleno emprego.

Acresce que, como se constata no citado relatório do FMI, as pandemias aumentam o risco de perda de capital humano feminino. Em muitos países em desenvolvimento, as meninas e jovens vêm-se obrigadas a abandonar a escola e a trabalhar.

A ONU estima que a pandemia aumentará em 15,9 milhões o número de pessoas que vivem na pobreza na América Latina e Caribe, elevando para 214 milhões o total de pessoas em situação de pobreza, muitas delas mulheres e meninas.

A igualdade gera crescimento. Previa-se que a melhoria da igualdade de género na União Europeia geraria 10,5 milhões de novos postos de trabalho até 2050. A taxa de emprego atingiria quase 80 % e o Produto Interno Bruto da UE poderia aumentar em quase 10 % até 2050.

Na comemoração do 25.º aniversário da Conferência de Pequim sobre os direitos das mulheres, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas António Guterres descreveu a pandemia como uma “guerra oculta contra as mulheres” e alertou que, se não forem tomadas medidas de imediato, “a Covid-19 pode apagar uma geração de frágeis avanços em direcção à igualdade de género”. Tal como salientou, "Mulheres e raparigas aguentam o pior do enorme impacto social e económico da pandemia".

As mulheres são muito mais frágeis perante a pobreza. As primeiras estimativas apontam para quase 435 milhões de mulheres no nível da pobreza em 2021, com a pandemia a contribuir para um aumento de 11%, para além de uma maior carga de trabalho no núcleo familiar e um maior risco de perda de cargos de chefia nas instituições e empresas. Os números referentes à violência doméstica reflectem também uma realidade extremamente preocupante: uma em cada cinco mulheres sofreu de agressões físicas ou sexuais por parte do seu parceiro em 2019, um número que agravou em 2020 durante o período de confinamento.

Anita Bhatia, vice-directora executiva da ONU Mulheres, Agência das Nações Unidas para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres, sublinha que “a pandemia tem um impacto muito profundo nas mulheres”, lembrando que estão na linha da frente da saúde na resposta à doença, dado que 70% cento dos profissionais de saúde e auxiliares são do sexo feminino, ocupando a maioria dos sectores que foram mais castigados pela crise como o turismo e o comércio.

A ONU considera que esta é uma questão que deve ser vista como “uma pandemia na sombra, um problema de saúde pública como a malária”, e o Secretário-Geral da ONU alerta que “se não agirmos agora, a Covid-19 pode apagar uma geração de frágeis avanços em direcção à igualdade de género.”

Como forma de apoio, a ONU Mulheres defende que os governos deveriam apoiar e valorizar mais as tarefas domésticas e começar a remunerar os cuidadores, que são na maioria mulheres. O próximo passo seria "adoptar políticas que apoiassem o acesso a serviços de acolhimento de crianças; prolongar as licenças pagas à família e por doença; introduzir modalidades de trabalho flexíveis e programas que compensem os pais durante o encerramento das escolas ou centros de dia."

O FMI destaca Portugal, Áustria, Itália, países da América Latina, e o Togo, como alguns dos países que estão a implementar políticas que apoiam as mulheres afectadas pela crise.

O princípio da igualdade de todos os homens perante a lei é um dos pilares fundamentais da civilização moderna. Todavia, nas suas diversas aplicações, suscita grandes dificuldades de interpretação e de aplicação, sendo um significativo reflexo do ambiente político, económico e social de cada país e cada época.

Vivemos a nível mundial uma crise imprevisível.

Poderá parecer fácil falar de igualdade e enunciar a igualdade. O mais difícil é praticar efectivamente a igualdade. Incumbe-nos a todos contribuir para criar condições para que, realmente, viva a diferença.

Clotilde Celorico Palma