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"Somos vítimas do relaxamento da memória"

 

Vivemos num mundo em que nos invade informação de todo o tipo: boa, má, verdadeira, falsa. Surge por toda a parte, mesmo que não a procuremos. Esta abundância tornou-nos permeáveis e receptivos, mas também dependentes de reservatórios onde se armazenam as memórias, o conhecimento. Perdemos o hábito da memorização: se ficamos sem bateria no telemóvel e precisamos de contactar alguém com urgência, rapidamente nos aflige o facto de nem sabermos de cor alguns números essenciais. Desesperamos à procura de um carregador… Sempre que temos alguma dúvida, facilmente obtemos resposta recorrendo a um qualquer motor de busca na internet. Como refere Irene Vallejo, uma jovem escritora espanhola, na sua genial obra “O Infinito Num Junco”: somos vítimas do relaxamento da memória. A este propósito, a autora refere as preocupações de Sócrates quanto à escrita: «Suspeitava que, graças ao auxílio das letras, se confiaria o saber aos textos e, sem o empenho de compreendê-los a fundo, bastaria tê-los ao alcance da mão. E assim, já não seria sabedoria própria, incorporada a nós e indelével (…) mas sim um apêndice alheio.»

É fácil sorrir ao ler estas palavras, uma vez que é graças à escrita e aos livros que se conserva e difunde o conhecimento, numa extensão e rigor que a oralidade não permitiria, estimulando a sua compreensão e registando o seu desenvolvimento, exactamente ao contrário dos temores de Sócrates. No entanto, a revolução da informação a que assistimos torna-nos dependentes do imaterial, do “acesso à nuvem”, o que é assustador: se há uma falha de energia, ou um ataque informático, acabou-se o acesso ao conhecimento e as nossas memórias deixam de existir. Sem o Google, as nossas vidas teriam um pendor pós-apocalíptico, com lacunas graves.

O ensino está cada vez mais virado para a utilização de fontes imateriais, “baseadas na nuvem”, e os alunos cada vez mais habituados a obter informação com um smartphone, com o risco de “relaxarem” gravemente as suas memórias, de desaprenderem como se consultam livros e, mais grave do que tudo isso, perderem o sentido crítico, dada a permeabilidade a toda e qualquer informação que lhes chega. O acto de estudar, no sentido de ler, compreender, criticar, assimilar, elaborar para desenvolver conhecimento, está a cada ano a transformar-se num consumo rápido de informação recebida por via electrónica, que se esgota após um momento de avaliação, restando pouco ou nenhum resíduo, ao ponto de vermos alunos falharem repetidamente, quando confrontados com perguntas repetidas em diferentes testes.

A pandemia do Sarscov2 veio agudizar esta tendência, tendo estado o ensino dependente de contactos efémeros, distantes, virtuais, durante longos meses, com graves prejuízos para a criação de memórias permanentes de métodos de análise, capacidade de trabalho e de pensamento crítico. A recuperação intelectual será mais lenta do que a recuperação da saúde física. A obra de Irene Vallejo leva-nos a pensar na importância da leitura e dos livros como reservas de conhecimento, mas também como salvação do caos. Se a isto juntarmos o recente eclodir de uma guerra “à porta de casa”, é ainda mais premente a reflexão da autora quando nos diz que em “épocas tirânicas, as livrarias costumam ser lugares de acesso ao que é proibido”: se apenas dependermos da informação “da nuvem”, facilmente um tirano pode decidir bloquear o serviço informático que lhe dá acesso, proibir o uso de certas palavras e conteúdos nos meios de divulgação instantânea a que estamos habituados e rapidamente ficamos reféns. São, portanto, os livros, as livrarias, as bibliotecas, que nos salvam. E, “O Infinito Num Junco” leva-nos a pensar em tudo isto.