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José de Sousa Saramago: um contador de histórias

 

Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem

Em 18 de novembro de 2022 celebrar-se-ão os 100 anos do nascimento do nosso Nobel da literatura. Uma figura portuguesa incontornável e emblemática no pensamento contemporâneo do nosso país. José de Sousa Saramago foi um contador de histórias. Embora tenha ficado mais conhecido como romancista, foi também um teatrólogo e poeta; e, atrevo-me a dizer Sociólogo, criando uma visão muito sua, na análise interpretativa e compreensivista das pessoas nos seus contextos de vida.
Do seu legado, o Ensaio sobre a cegueira é um dos mais acutilantes. Não só porque marca a disrupção com a forma de escrita vigente; ficando também, o autor, conhecido mundialmente por este tipo de escrita. Saramago misturou o discurso direto com o indireto, recorrendo à separação destes por vírgulas... sendo uma das suas caraterísticas marcantes. Não obstante, este romance é uma análise profunda de como os seres humanos vivem os cenários imprevisíveis, mudando a sua forma de ser e estar com os outros, como até então estariam. 
A cegueira branca chegou a uma cidade, em que todos ficam cegos, à exceção de uma mulher. As estruturas sociais entram em colapso. Esta cegueira assume a forma de epidemia, e a mesma não diminui com as atitudes tomadas pelo governo; antes pelo contrário, emergem descontrolados tumultos sociais. Apenas uma mulher não perdeu a visão, e que secretamente a manterá, ocultando este facto, assumindo-se como a tábua de salvação aos que lhe estão próximos; e, presenciando todos os tipos de horrores que serão causados pela luta na sobrevivência, e pelos sentimentos daí decorrentes. O dia-a-dia da quarentena neste manicómio é descrito por lutas entre grupos por água, comida e outros bens, compaixão pelos doentes e mais necessitados, como idosos ou crianças,  violência e abuso sexual, mortes, entre outras situações. A hierarquia das necessidades, de Maslow, aqui muito bem explicada. As pessoas, quando as suas necessidades que estão na base da sobrevivência são ameaçadas, tais como as fisiológicas (comida, água, sono...) e de segurança, rapidamente mudam de registo.
É um livro que retrata a crueldade do ser humano, colocando em discussão muitos aspetos éticos e morais. O próprio autor escreveu “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
A obra foi traduzida para várias línguas, e adaptada ao cinema pelo brasileiro Fernando Meireles, tendo Julianne Moore, como personagem principal (a mulher do médico, a única que não perdeu a visão), e Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal, Alice Braga, entre outros. Uma das cenas mais marcantes do filme aponta-se o cão das lágrimas. No cenário caótico e de desespero, a mulher do médico sentada numa escadaria chora, e um cão aproxima-se e lambe-lhe as lágrimas... Vale a pena ver o filme e ler o livro. Um excelente exercício de reflexão à nossa humanidade!
Apesar dos seus 26 anos de vida, este livro não perdeu a atualidade. É esta a marca das grandes obras, que se transformam em clássicos. Escrito em 1995, assenta tão bem nos dias que vivemos, a propósito do cenário pandémico Covid 19... Quem não se lembra, há um ano atrás, das corridas aos supermercados e da compra desenfreada do papel higiénico? Imaginem se tivéssemos perdido a visão...  Que escreveria José Saramago, se estivesse entre nós?
De facto, como seres humanos, não somos bons; e, é preciso ter a coragem para reconhecer isto....


José Saramago
16 de novembro de 1922 – 18 de junho de 2010
Ensaio sobre a cegueira (1995), Caminho