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Existe algo de diferente na leitura

 

Existe algo de diferente na leitura. Ela é uma experiência, muitas vezes a médio e longo prazo, que destrava memórias e cria novas, que nos leva para lugares interiores que talvez nunca tenhamos imaginado explorar. O livro é uma obra acabada sempre inacabada porque está sempre aberta às iniciativas de leitores diversos, dotados de competências culturais distintas em diferentes situações sociais.
Na tentativa de corresponder ao desafio que me foi proposto, no âmbito de uma sugestão de leitura, escolhi o livro ‘A Grande Mudança – Origem e História do Pensamento Moderno’ (National Book Award e prémio Pulitzer nos EUA) de Stephen Greenblatt, professor na Universidade de Harvard, galardoado com várias distinções académicas.

É um livro apaixonante e cativante sobre a descoberta de um manuscrito que mudou o rumo da História. A partir do relato do encontro e divulgação do livro de Lucrécio ‘Da Natureza das Coisas’ (De Rerum Natura), podemos traçar a origem e a história do pensamento moderno. As ideias revolucionárias sucederam-se e marcaram o espírito da Renascença, inspirando artistas e pensadores, de Boticelli a Galileu, passando, mais tarde, por Freud, Darwin e Einstein e moldaram o mundo tal como hoje o conhecemos. A descoberta do livro de Lucrécio, ‘Da Natureza das Coisas’, alterou tudo na Europa.

Estávamos no século XV. Num mosteiro remoto, um homem retira de uma prateleira cheia de pó um manuscrito antigo. Trata-se de Poggio Bracciolini, o maior caçador de livros do Renascimento, que percebe, com um enorme entusiasmo, a importância do que acabara de descobrir: o antigo poema de Lucrécio, De Rerum Natura, que esteve praticamente perdido durante mais de mil anos. Poggio encontrara um belíssimo poema sobre as mais perigosas das ideias: que o universo funciona sem a ajuda dos deuses, que o temor religioso é prejudicial à vida humana, que o prazer e a virtude não são opostos e que a matéria é constituída por minúsculas partículas em movimento sem fim e que colidem aleatoriamente, desviando-se para seguirem novos caminhos.

A partir de Lucrécio, a ciência moderna construiu um mundo novo. Lucrécio procurava que os homens do seu tempo se libertassem das angústias e sofrimentos que os sobrecarregavam: contra os temores impostos pelas superstições religiosas, afirmava que não se deve temer a morte nem os castigos que nos esperariam após ela. Nos novos tempos científicos, já poucos temem esses castigos, mas continuamos a temer a morte. Ao contrário do que Lucrécio esperaria, um conhecimento mais aprofundado da natureza não nos libertou deste medo, agora envolto em novas superstições: a de que a doença e a morte não são naturais e devem ser evitadas a todo o custo; a de que podemos afastar o mais possível a morte; a de que essa é a maior conquista da modernidade; a de que, por fim, o progresso tecnológico nos levará a uma nova condição de transhumanos.

O mais maravilhoso de ‘A Grande Mudança’ é a forma como Stephen Greenblatt nos leva em viagem pelos subterrâneos e pelas penumbras do século XV – avançando aqui e ali e recuando até Alexandria (à destruição da biblioteca e à morte de Hipátia), até Roma (onde se criaram bibliotecas públicas), à invenção do papiro, à obsessão de Petrarca com os clássicos latinos ou aos escritos de Cícero. De todo esse mundo ficaram livros – e é de livros que este livro é feito: de paixões e obsessões sobre o seu desaparecimento, as suas cópias, a sua proibição e as fogueiras que acenderam. Uma leitura ideal para o inverno, um guia da alegria e do perigo de ler.