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Ler apenas pelo prazer da leitura

Aproximando-se o verão, esta será a altura ideal para começarmos a reunir os livros que nos acompanharão nas semanas em que teremos liberdade para ler apenas pelo prazer da leitura. Gostaria de contribuir com duas sugestões de obras que jogam com a própria arte da escrita e confundem, propositadamente, o leitor, privando-o do conforto das certezas e dos dados adquiridos. São elas Se Numa Noite de Inverno um Viajante de Italo Calvino, um clássico publicado em 1979, e A Anomalia de Hervé Le Tellier, uma obra recente, que venceu o Prémio Goncourt em 2020.

Se Numa Noite de Inverno um Viajante é um romance cheio de surpresas, é como uma caixa dentro de uma caixa dentro de uma caixa, uma verdadeira matriosca que consiste numa sequência de dez inícios de histórias cuja leitura é sempre interrompida por um motivo ou por outro numa progressão de eventos cada vez mais inusitados. O Leitor, que é a personagem principal desta viagem, esforça-se por chegar ao fim da história, de alguma história, sem nunca conseguir porque está sempre a recomeçar a leitura. Porém, sempre que o faz, depara com um novo início, uma nova história, um estilo diferente… mas algo passa de umas histórias para outras — uma frase aqui, uma descrição ali. Em cada capítulo, o Leitor terá um papel mais preponderante e, pela forma insistente como persevera na leitura mesmo perante todos os obstáculos que enfrenta, personifica o Leitor ideal, aquele que merece, chegado ao fim, saber toda a verdade, muito embora tal seja, efetivamente, inexequível. Neste livro sobre livros, Calvino mostra-nos que a leitura abre janelas que nos oferecem múltiplas possibilidades, embora seja impossível chegarmos ao conhecimento da verdade. No entanto, alcançar a verdade não é, de facto, o mais importante. O que conta realmente é a viagem e o prazer que obtemos ao desfrutar de cada nova possibilidade que se abre dentro de um livro.

Numa lógica semelhante de provocar surpresa no leitor, A Anomalia oferece-nos uma galeria de personagens fascinantes, cuja personalidade influencia o estilo dos capítulos que lhes são consagrados. Temos, entre outras, o assassino contratado que encara a morte com um distanciamento profissional, o autor quase desconhecido que se transforma num autor de culto de um momento para o outro, o cantor que esconde um segredo e uma menina que esconde outro. Aliás, todas estas personagens têm uma vida dupla em mais do que um sentido. Sem levantar o véu para não estragar a surpresa porque o suspense é fundamental nesta obra, direi apenas que um acontecimento estranho — uma «anomalia», por assim dizer — ligará todas estas personagens e fá-las-á deparar-se consigo mesmas e tomar decisões quanto à sua própria identidade e aquilo que as define enquanto pessoas. Em momentos cruciais, estas personagens terão de decidir qual a versão de si próprias que mais merece viver — será a persona pública ou aquela que está escondida dos olhos da sociedade? Esta é daquelas obras que são impossíveis de pousar enquanto não chegamos ao fim, e contém em si tantos romances quantas as personagens que a compõem.  
Ficam duas sugestões para ler só porque sim, porque é bom e distrai e abre horizontes, transportando-nos para outros tempos e outros lugares. 

Se Numa Noite de Inverno um Viajante (título original: Se una notte d'inverno un viaggiatore) está publicado em Portugal pela Editora Dom Quixote com tradução de José Colaço Barreiros.
A Anomalia (título original: L’anomalie) está publicado em Portugal pela Editorial Presença com tradução de Tânia Ganho.